Textos de Mestre Dogen (6)


Bodaisatta Shishôhô
Os Quatro Métodos de Harmonização dos Bodhisatva
Dogen Zenji – Shôbôgenzô

Os quatro métodos de harmonização dos bodhisatvas são: doação, fala gentil, ação benéfica e cooperação.

Doação significa não cobiçar, não ser ganancioso. Em termos mundanos se diz que não ser ganancioso significa não bajular. Se alguém reinar sobre os cinco continentes, fornecer boa educação ao povo é a prática de não cobiçar. Doação é, por exemplo, como renunciar a tesouros para dá-los para estranhos. Oferecer flores de uma montanha distante a um Buda, distribuir tesouros de vidas passadas para o beneficio dos seres – em termos de ensinamento e em termos das coisas, em ambas ações existem as virtudes inerentes à doação.

Apesar de no fundo ser verdade que nada pertence a ninguém, isso não nos impede de dar. Não importa o quão insignificante seja o objeto dado – o que importa é que o esforço seja genuíno. Quando deixamos o Caminho para o Caminho, alcançamos o Caminho. Alcançando o Caminho, o Caminho é necessariamente deixado ao Caminho. Quando os bens são deixados para os bens, os bens infalivelmente se tornam doação. O eu dá para o eu, o outro dá para o outro. O poder causal da doação vai longe, chegando até aos céus e aos sábios e santos. O motivo para dizer isso é que a pessoa se tornou um recipiente do dar e formou certa afinidade. A respeito disso o Buda disse: “Quando uma pessoa que dá entra em um grupo, já no primeiro olhar as pessoas reconhecem a bondade de seu coração”.

Portanto nós devemos dar mesmo uma única frase ou um único verso do ensinamento. Isso se tornará uma boa semente nesta vida e em vidas futuras. Nós devemos dar mesmo uma única moeda ou um pedacinho de grama – isso fará as sementes do bem germinarem. O Darma também é um tesouro, e os tesouros materiais também são Darma. Tudo depende da vontade e da aspiração.

De fato já ocorreu um caso em que uma pessoa contribuiu para o bem-estar de outra lhe dando fios de barba, e outro caso em que um menino se tornou rei por ter presenteado areia ao Buda. Eles não ansiaram pelo agradecimento dos outros, mas apenas fizeram o seu melhor. Construir uma ferrovia ou uma ponte são também atos da generosidade transcendental da doação.

Quando nós aprendemos bem a doar, nascer e morrer também são doar. Todo trabalho produtivo é doar. Confiar flores ao vento e pássaros à estação também são atos meritórios de doação. O princípio comprovado pelo rei Asoka dando meia manga para alimentar um grupo de monges é que isso é um grande ato de doação. Devemos cuidadosamente estudar esse princípio. Não se trata apenas de fazer o esforço correto, mas também é preciso tomar cuidado para não perder a oportunidade certa.

Verdadeiramente, é porque as virtudes da doação nos são inerentes que nós agora alcançamos a nós mesmos. O Buda disse, “Isso pode ser usado para si mesmo – mais ainda, pode ser dado aos seus próprios pais, esposa e filhos”. Então nós sabemos que mesmo usar algo para si mesmo é uma porção de doação; dar a seus pais esposa e filhos também é doação. Se nós pudermos dar mesmo um cisco de poeira com um coração de altruísmo, apesar de isso ser algo que nós mesmos fazemos, devemos silenciosamente nos alegrar com isso, pois acabamos de praticar corretamente uma das virtudes dos Budas, pois acabamos de praticar um dos princípios dos bodhisatvas.

O que é difícil mesmo é transformar as mentes dos seres vivos: o que se pretende com a doação, qualquer que seja a coisa dada, é transformar as mentes dos seres vivos e ajudá-los a atingir a iluminação. No início, isso deve ser feito por meio da doação. É por isso que o primeiro dos seis caminhos transcendentais [paramitas] é a doação. Não devemos calcular a grandiosidade ou pequenez da mente transformada, nem a grandiosidade ou pequenez da coisa dada. Entretanto, há um tempo em que a mente transforma as coisas, e há a doação na qual as coisas transformam a mente.

Fala gentil significa que ao olhar para todos os seres nós devemos despertar em nós uma mente de atenção, amor, e cuidado máximos. Isso é a ausência da fala áspera. Na convenção social comum existe a etiqueta de perguntar “como vai?”. No Budismo, usamos a expressão “te cuida” e também a conduta ética de perguntar como a pessoa está. Fala gentil é falar com a profunda intenção de cuidar gentilmente de todos os seres da mesma maneira que nós cuidaríamos de um bebê.

Devemos louvar aqueles que são virtuosos e ter compaixão pelos que não são. Uma vez que nos entreguemos à fala gentil, gradualmente iremos aperfeiçoar a fala gentil; assim, uma fala gentil até então desconhecida aparecerá. Enquanto estivermos vivos, devemos alegremente praticar a fala gentil; com isso nós jamais regrediremos no Caminho, vida após vida. A fala gentil é a fonte da superação da inimizade e da harmonização dos governantes. Ouvir diretamente palavras gentis ilumina o semblante e agrada o coração; ouvir palavras gentis ditas em nossa ausência tem um efeito ainda mais profundo. Saibam que a fala gentil provém de um coração gentil, e um coração gentil tem a sua semente na boa vontade. Saiba que a fala gentil tem o poder de virar os céus. Não se trata apenas de elogiar os virtuosos.

Ação benéfica significa inventar meios de beneficiar a todos os seres. Por exemplo, olhando para um estrada, longe e perto, podemos inventar meios de beneficiar aos outros. Ao ver uma tartaruga cansada ou um pássaro enfermo, devemos ter compaixão e ajudá-los. Devemos ajudar uma tartaruga cansada ou um pássaro enfermo sem esperar o seu agradecimento, mas apenas pelo desejo de fazer o que é benéfico.

Os tolos pensam que o seu próprio benefício será reduzido se eles pensarem antes no benefício dos outros. Tal não é o caso. A benevolência é universal e beneficia a todos. Antigamente existiu um soberano que interrompia o seu próprio banho no meio para ajudar alguém que dele precisasse. Ele também estava sempre disposto a ajudar e educar pessoas de outros países. Então, nós devemos ajudar igualmente aqueles que são hostis e aqueles que são amigáveis. Isso será benéfico para nós e para os outros. Se alguém desenvolver esse coração, o princípio da ação benéfica ser inerentemente não-regressiva será beneficamente representado, mesmo pelas plantas e árvores, água e vento. Nós devemos nos esforçar de todo coração para libertar aos ignorantes.

Cooperação é não-oposição. É não se opor a si mesmo e não se opor aos outros. É como o Buda, que manifestou-se em um corpo humano em consideração a nós. O Buda também pode se manifestar em outros mundos que não o humano. Quando nós compreendemos a cooperação, o eu e os outros são uma só assimdade. A sua música e vinho acompanham as pessoas, acompanham os seres celestiais, acompanham os espíritos famintos. As pessoas andam com música e vinho, e a música e vinho andam com a música e vinho. As pessoas andam com pessoas, os seres celestiais andam com seres celestiais, os espíritos famintos andam com espíritos famintos – tal lógica aparece, tal lógica é o aprendizado da cooperação.

Por exemplo, a prática da cooperação é um “jeito”, um padrão, uma atitude. Depois de ver os outros sendo o eu, devemos ver o eu sendo os outros. Com o tempo, o “eu” e os “outros” tornam-se um só.

Como disse um antigo filósofo: “O oceano não rejeita a água – por isso ele se tornou imenso. As montanhas não rejeitam a terra – e é por isso que elas podem se tornar tão grande. Um soberano iluminado não rejeita as pessoas – portanto o seu povo pode tornar-se populoso.” Saiba, ademais, que a virtude da água não rejeitar o oceano também é completa. Por essa razão, as águas se reúnem e se tornam um oceano, a terra se acumula tornando-se uma montanha. Nós também sabemos implicitamente que porque o oceano não rejeita o oceano, ele forma um oceano e cria a sua imensidão. Porque a montanha não rejeita a montanha, ela forma a montanha e a sua altura. Porque o soberano iluminado não rejeita as pessoas, ele faz delas uma comunidade. Um soberano iluminado não rejeita as pessoas, mas isso não significa que não há recompensas e punições. Mas, apesar de haver recompensas e punições, não há o rejeitar pessoas.

Em tempos passados de incorrupta honestidade, as nações não tinham recompensas e punições. Isso é assim porque as recompensas e punições daquele tempo não podem ser comparadas às de hoje. Entrtanto, mesmo hoje devem existir pessoas que fazem o que é certo sem buscar nenhuma recompensa para isso. Tal atitude é inconcebível para o ignorante.

Pelo fato de um soberano iluminado ser sábio, ele não rejeita pessoas. O povo sempre forma uma nação – apesar das pessoas buscarem um soberano iluminado, como a maioria delas não sabe o motivo pelo qual um soberano iluminado é um soberano iluminado, elas apenas se rejubilam por não serem rejeitadas por um soberano iluminado, mas elas mesmas não sabem como não rejeitar um soberano iluminado. Portanto, como existe a lógica da cooperação tanto nos soberanos iluminados como nas pessoas ignorantes, a cooperação é o compromisso prático do bodhisatva. Nós devemos olhar para todos os seres com  uma suave aprovação.

Adaptação para o Português de Giovanni Dienstmann,
baseada na tradução inglesa de Thomas Cleary
e na tradução para o português de Pergentino

Textos de Mestre Dogen (5)


Bendôhô
A Maneira de Entrar no Caminho

de “Eihei Shingi” – “Regras Puras para a Comunidade Zen”
Dogen Zenji

Todos Budas e todos ancestrais estão no Caminho e se engajam com ele; sem o caminho não se engajariam nele. O dharma  existe e eles aparecem; sem o dharma eles não apareceriam. Portanto, quando o grupo se senta, sente-se junto com eles; quando o grupo [gradualmente] se deita, deite-se também. Em atividade ou quieto em unidade com a comunidade, por todos renascimentos e mortes não se separe do mosteiro. Destacar-se não traz benefício; ser diferente dos outros não é nossa conduta. Isto é a pele, carne, ossos e medula dos budas e ancestrais, e também abandonar nosso próprio corpo e mente. Portanto, [engajar-se no Caminho] é a prática-iluminação antes do kalpa da vacuidade, portanto não se preocupe com a sua realização.  É o koan antes dos julgamentos, então não espere grande realização.

Para o zazen da noite, quando ouvir o sino, vista seu kesa, entre na sala dos monges, ajeite-se no seu lugar, e faça zazen. O abade senta-se na cadeira de abade de frente para a [estátua de] Manjushri e faz zazen, o monge-chefe está de frente para a ponta externa da plataforma e faz zazen. E os outros monges estão de frente para a parede e fazem zazen. Enquanto o abade faz zazen, um banco está colocado atrás de uma tela nas costas de sua cadeira, onde tanto um jisha ou um anja podem atender ao abade.

Quando é hora de zazen, o abade entra na sala pelo lado norte da entrada da frente, e vai para frente de Manjushri, fazendo reverências e oferecendo incenso. Depois de cumprimentar Manjushri, o abade circula uma vez a sala com as mãos em shashu, retorna e faz reverência para Manjushri; vai e faz reverência para a cadeira de abade, vira-se para direita e faz reverência novamente para Manjushri; enfia as mangas do koromo[1] sob seus braços, senta-se na cadeira e retira seus chinelos;  dobra as pernas e senta-se de pernas cruzadas. O jisha e anja pemanecem  em pé do lado de dentro da  entrada, pelo lado sul, não acompanhando o abade durante a circulação. Depois do abade sentar em sua cadeira, o jisha e anja fazem reverência para Manjushri e silenciosamente sentam-se no banco atrás da cadeira. O jisha ou anja cuidam do incensário do abade.

Se o abade vai dormir na sala dos monges, um tan de dormir é colocado entre o shuso e a cadeira do abade. Quando é hora de levantar, [o abade] retorna para cadeira e faz zazen. (Durante o zazen da manhã a regra é para os monges não vestirem seus kesas. O kesa do abade está pendurado sobre sua cadeira).

Quando o zazen da noite está para terminar, depois do segundo ou terceiro horário na primeira, segunda ou terceira parte, de acordo com a instrução do abade, soa o han. Quando o han pára de soar os monges fazem gashô, dobram seus kesas, os enrolam em tecido, e os colocam acima do armário (nos seus assentos). O abade não remove seu kesa mas levanta-se da cadeira, vai para frente de Manjushri e faz reverência, e sai através do lado norte da porta da frente. O jisha e anja ambos saem antes e permanecem em frente à sala dos monges, respeitosamente aguardando a saída do abade. Um deles levanta a cortina [na entrada] para ajudar [o abade] sair. Eles também fazem isso quando o abade entra na sala. Se o abade está dormindo na sala, um ou dois anjas permanecem no banco atrás da cadeira do abade, e um ou dois jishas dormem depois da primeira posição do jisha de Manjushri ou ao lado dos assentos dos novos monges [no gaitan[2]].

[Depois de remover os kesas], os monges continuam zazen por uns momentos. Devagar e deliberadamente eles desenrolam seus edredons [e roupa de cama], colocam os travesseiros, e deitam-se quando os outros deitam. Não permanecem sentados quando os outros monges não estão sentados, nem olham ao redor no grupo. Não deixam arbitrariamente seus lugares para ir onde não devem. Apenas acompanhar a comunidade e deitar é a maneira correta.

O Sutra dos Três Mil Procedimentos diz que existem cinco maneiras de deitar. A primeira é com a sua cabeça em direção a Buda. A segunda é não olhar para Buda enquanto deitado. A terceira é não espichar suas pernas juntas [em vez de mantê-las dobradas]. A quarta é não deitar-se de bruços ou costas. A quinta é não levantar seus joelhos. Definitivamente, durma deitado sobre seu lado direito e não seu lado esquerdo. Quando você está deitado sua cabeça deve estar na direção de Buda. Agora [na sala dos monges] nossas cabeças estão em direção do jôen, de maneira que nossas cabeças estão na direção de Manjushri. Não durma deitado de bruços. Não levante ambos joelhos deitado de costas. Não deite de costas com as pernas cruzadas. Não estique as pernas juntas. Durma sem despir o kimono[3]. Não fique desavergonhadamente nu da maneira de outros caminhos. Não durma com seu cinto desatado. Deitado à noite, lembre-se da radiância.

Pelo fim da noite, ouvindo o som do han em frente à sala do monge-chefe (que é tocado na quarta ou quinta parte do terceiro horário da primeira, segunda, ou terceira parte do quarto horário de acordo com a decisão do abade), o grupo suavemente se levanta, sem se levantar precipitadamente. Não permaneça dormindo ou deitado, o que é rude para o grupo. Quietamente tome seu travesseiro e o coloque em frente ao armário, sem fazer barulho ao dobrá-lo. Seja cuidadoso para não perturbar as pessoas nos tans vizinhos.

Permaneça no seu assento por uns momentos, cubra-se com seu edredon, e faça zazen em seu zafu. Rigorosamente evite fechar seus olhos, o que traria sonolência. Se você repetidamente abrir seus olhos [piscar] uma suave brisa vai penetrá-los e você facilmente despertará de sua preguiça. Nunca se esqueça que a morte ocorre velozmente e você ainda não percebeu a conduta do caminho. Não distraia o grupo se alongando, bocejando, suspirando ou se abanando. De maneira geral, sempre demonstre respeito pelo grupo. Nunca desdenhe ou ridicularize o grupo. Não cubra a cabeça com o edredon. Consciente da sonolência, remova o edredon e faça zazen com um corpo animado.

Ao ouvir uma oportunidade [sons das pessoas em movimento], vá para o lavatório e lave seu rosto. (Ouvir uma oportunidade significa quando não está cheio de outros monges lavando a face). Carregue o shukin[4] pendurado no seu antebraço esquerdo com ambas pontas viradas para você ou ao contrário. Desça suavemente de seu assento; caminhe silenciosamente numa rota conveniente em direção à entrada posterior; com ambas mãos silenciosamente puxe para o lado a cortina; e saia.

Se seu lugar é no lado mais alto (norte) da sala, saia pelo lado norte [da entrada dos fundos], atrevessando a porta com seu pé direito. Se seu lugar é na parte mais baixa, saia pelo lado sul, atrevessando a porta com seu pé esquerdo. Não faça barulho arrastando seus chinelos ou pisando no chão. Enquanto for ao lavatório através da passagem posterior e casa da água (well shed), quando encontrar alguém no caminho não se falem. Mesmo que não encontre ninguém, como ousaria cantar ou recitar? Não deixe suas mãos caídas em suas mangas mas mantenha-as em shashu e vá em frente. Quando chegar na área da pia, aguarde um lugar. Não empurre os outros monges. Quando obtiver um lugar, então lave a face.

A maneira de lavar sua face é: pendure o shukin no seu pescoço com ambas pontas penduradas na sua frente, então com cada mão agarre uma ponta, ponha sob as axilas esquerda e direita, e cruze ambas pontas uma sobre a outra atrás de você. Novamente, traga-as para baixo de ambas axilas pela sua frente e amarre-as por baixo de seu peito.

Todo seu colarinho e ambas mangas são arregaçadas firmemente acima dos cotovelos e abaixo dos ombros, como se presas por um cinto de kimono. A seguir, pegue seu palito de dentes, faça gassho, e diga:

Segurando o palito de dentes,
Faço votos com todos os seres
Que nossas mentes atinjam o verdadeiro dharma,
E naturalmente estejam puras e limpas.

Então use o palito de dentes e recite:

Usando o palito de dentes pela manhã,
Faço votos com todos os seres
De cuidar os caninos
Que mordem todas aflições.

Buda disse para não usar mais que um terço do palito de dentes. Geralmente, você deve limpar seus dentes e escovar sua língua de acordo com o dharma. Não escove sua língua mais de três vezes. Se sua língua se avermelhar por irritação você deve parar. Em tempos ancestrais se dizia “Para uma boca purificada use o palito de dentes, enxágue sua boca, e escove sua língua”. Quando você estiver fazendo isso na frente de outros, cubra sua boca de maneira que não vejam e sintam nojo. É claro que você deveria cuspir onde outros não podem ver. Os templos da China Song não têm um lugar nos lavatórios para usar palitos de dentes. Agora em Daibutsuji temos um lugar para isso em nosso lavatório.

Com ambas mãos leve sua bacia de lavar a face para a frente do fogão [no lavatório], abaixe a bacia, pegue uma concha e derrame água quente na bacia. Então retorne à pia e, usando a sua bacia, suavemente use suas mãos para lavar o seu rosto cuidadosamente. Apropriadamente limpe seus olhos, suas narinas, ao redor das orelhas e sua boca até que estejam limpas. Não desperdice muita água pelo uso imoderado. Quando enxaguar sua boca, cuspa a água fora da bacia. Lave sua face com seu corpo curvo e cabeça abaixada, não fique ereto, de maneira a não respingar água na bacia de seu vizinho. Com ambas as mãos, levante água quente e limpe toda sujeira. A seguir, use sua mão direita para desatar o shukin e esfregar sua face. Se existe uma toalha de uso comum você pode usá-la. Não faça barulho com sua concha nem faça sons enquanto gargareja que possam sobressaltar ou perturbar o puro grupo. Em tempos antigos se dizia que “lavar a face durante o quinto horário é fundamental para o bem da prática”. Como você poderia cuspir ruidosamente ou fazer barulho com a bacia na sala e perturbar os monges?

A maneira digna de retornar à sala corresponde à maneira de sair mencionada antes. Retorne ao seu lugar, cubra-se com seu edredon, e faça zazen de acordo com o dharma. Se desejar, pode não usar o edredon. Ainda não vista o kesa.

Quando você quer trocar o kimono, não deixe seu lugar mas troque ali. Primeiro cubra-se com seu kimono diurno, então silenciosamente desate seu kimono de dormir e remova-o de seus ombros, deixando-o cair em volta de suas costas e joelhos de maneira a cobrí-lo como um cobertor.  Quando tiver amarrado o kimono diurno, pegue seu kimono de dormir e o armazene no armário atrás de seu assento Para trocar do kimono diurno para kimono de dormir, claro que faça da mesma maneira. Não se exponha enquanto muda de kimono e não fique na plataforma arrastando suas roupas enquanto as dobra.

Não coce a cabeça [espalhando caspa]. Também não use um juzu [rosário] fazendo sons que distraiam o grupo. Não converse com seus vizinhos na plataforma, e tanto sentado ou deitado, alinhe-se parelhamente com os outros. Chegando ou saindo de seu assento, não rasteje na plataforma. Não faça barulho roçando seu assento.

Durante a quinto horário o han em frente à sala do monge-chefe soa três vezes. Depois do abade e monge-chefe sentarem-se na sala, os monges não deveriam entar ou sair pela entrada da frente. Não dobre seu colchonete de dormir e edredon, mas aguarde pelo sinal de fim da noite, finalizando a grande quietude, quando o unpan em frente à cozinha e os hans diante de várias salas são batidos em sequência. Este é o momento para dobrar o colchonete e edredon, ponha-os de lado com seu travesseiro, e levante a cortina [em frente ao armário onde você põe suas coisas de dormir]. Então vista o kesa e sente-se de frente uns aos outros. Também ao sinal, as cortinas das janelas e entradas da frente e trás são levantadas, incenso preparado, e acende-se uma vela em frente ao altar de Manjushri.

O procedimento para dobrar o edredon é: quando você ouve o sinal do fim da noite, tome uma ponta do edredon com cada mão e dobre-as juntas verticalmente, fazendo duas camadas. Então novamente dobre verticalmente numa longa pilha de quatro camadas. A seguir dobre por cima horizontalmente e novamente uma quarta vez para fazer 16 camadas. Ponha todo para trás do colchonete de dormir e dobre firmemente o colchonete debaixo do edredon com o travesseiro dentro do edredon. Coloque o edredon com as dobras na sua direção. A seguir faça gassho  e com ambas mãos tome o kesa e seu invólucro de pano e ponha-os ambos no edredon. Então faça gassho e abra o invólucro de maneira a cobrir o edredon com ambas pontas espalhadas e drapeadas sobre o edredon à direita e esquerda. Não enrosque na frente e trás do edredon. A seguir, faça gassho ao kesa; com ambas mãos levante-o e ponha-o no topo de sua cabeça. Faça gassho e faça seu voto, proferindo o verso:

Magnífico manto da libertação,
Um sem forma campo de bênção,
Eu desdobro e visto o ensinamento do Tathagata,
Completamente salvando todos os seres.

Depois de vestir o kesa, vire-se para a direita e sente-se de frente ao centro.   Quando você dobra o edredon, não o espalhe de maneira a alcançar o próximo tan, e não o faça abruptamente, fazendo-o brandir. Simplesmente comporte-se com decoro e respeitosamente de acordo com o grupo. Depois do sinal do fim da noite não espalhe seu futon[5] e edredon para voltar a dormir. Depois do desjejum você pode beber chá ou água quente no shuryô, ou voltar a sentar no seu lugar.

O procedimento para zazen da manhã é, um pouco depois do desjejum, o inô [supervisor dos monges] pendura a placa [laqueada] “zazen” em frente ao sôdô e então faz soar o han. O monge-chefe e o grupo, vestindo seus kesas, entram na sala, e [os monges] fazem zazen de frete para a parede em seus lugares. O monge–chefe não fica de frente para a parede, mas os “chôshû” [chefes de departamento] sentam-se de frente para a parede como os outros monges. O abade faz zazen na sua cadeira.

Monges em zazen não viram suas cabeças para ver quem entra ou sai. Quando você quer sair para os lavatórios, antes de deixar seu assento primeiro retire o kesa e o ponha no zabuton. Então faça gassho e desça saindo do tan[6], virando-se no sentido horário para estar de frente a beira do tan. Ponha seus pés nos chinelos quando desce. Entrando ou saindo, não olhe nas costas das pessoas fazendo zazen, mas apenas abaixe a cabeça e vá em frente. Não caminhe em longas passadas, mas avance seu corpo com seus pés. Olhe para o chão cerca de seis pés à sua frente e tome meio-passos. Caminhar com calma despreocupada é requintado, quase como ficar quieto. Não arraste seus chinelos ruidosamente de maneira a rudemente distrair o grupo. Mantenha suas mãos juntas em shashu dentro de suas mangas. Não deixe cair suas mangas ao longo de suas pernas. Quando você dobrar o kesa, não se levante de seu assento nem pegue com a boca a ponta. Não levante o kesa para sacudi-lo vigorosamente. E também, quando dobrá-lo, não o pise nem o prenda sob o queixo. Não toque no kesa com mãos úmidas nem o deixe no altar de Manjushri nem nas pontas das longas plataformas [em direção ao centro da sala dos monges]. Não sente com as pontas do kesa espalhadas por baixo de você. Sempre olhe para ter certeza que o kesa está correto. Quando você quer vestir o kesa, primeiro faça gassho na direção dele. Depois de largar o kesa, o costume é levantar suas mãos em gassho. Você deveria saber [estas práticas para cuidar do kesa]. Durante o zazen, não use o kesa quando você deixa seu lugar e sai da sala.

Quando ouvem o primeiro sinal da cozinha, os monges todos fazem gassho e o zazen terminou. Então os monges deixam a sala vestindo seus kesas. Os zafus permanecem nos tans até depois do almoço, quando eles são guardados. Quando soa o primeiro sinal do almoço, o ino[7] designa um doan[8] para retirar a placa de zazen.

(Durante o zazen da manhã, posta-se a placa de zazen. Para os outros horários de zazen não se mostra a placa). Quando soa o hosan  põe-se a placa de hosan, e retira-se quando soa o sino da noite. Para sinalizar zazen toca-se um han pela manhã, na noite toca-se um sino. Os monges entram na sala dos monges vestindo seus kesas e fazem zazen de frente para a parede nos seus lugares. Antes do “fim da noite” [logo depois do despertar] e durante o meio da tarde [entre cerca de 15 e 17hs] apenas faça zazen sem o kesa. No meio da tarde vá para seu lugar na sala carregando seu kesa sobre seu braço esquerdo e remova seu zafu para zazen. Ainda não abra seu colchonete de dormir, ou você pode seguir o antigo costume de abri-lo parcialmente. Tire o kesa de seu braço, dobre-o e ponha-o no edredon, e faça zazen. Para o zazen de antes do fim da noite, ponha o kesa no armário e não o mexa).

Quando fizer zazen sempre use um zafu. Sente-se na posição de lótus completo, que você faz primeiro colocando o pé direito na coxa esquerda, e então colocando seu pé esquerdo na sua coxa direita. Ou você pode também sentar em meio-lótus, no qual você pressiona seu pé esquerdo na sua coxa direita. A seguir ponha sua mão direita no seu pé esquerdo e sua palma esquerda na sua palma direita com a face para cima, com as pontas dos polegares ligeiramente se tocando. Sente-se ereto, com a parte posterior da cabeça bem acima da coluna, sem inclinar para a esquerda ou direita, ou para frente ou trás. Suas orelhas devem estar alinhadas com seus ombros e seu nariz alinhado com seu umbigo. Coloque a língua no céu da boca com seus dentes e lábios fechados. Mantenha seus olhos abertos, nem muito abertos nem muito fechados, sem as pálpebras cobrirem as pupilas. Seu pescoço não deveria projetar-se à frente de suas costas. Apenas respire naturalmente através de seu nariz, sem inspirar em alto som, sem tentar fazer a respiração mais longa ou curta, lenta ou forte. Arranje tanto corpo e mente, fazendo diversas respirações profundas com seu corpo todo de maneira que esteja relaxado por dentro e por fora, e balance para esquerda e direita sete ou oito vezes. Firme e imóvel, acomode-se sentado e pense no não-pensar. Como você pensa no não-pensar? Além de pensar[9]. Esta é a arte essencial do zazen.

Quando você se levantar do sentar, levante-se gradualmente. Quando descer da plataforma, desça com cuidado. Não levante alto seus pés nem dê passos grandes, correndo em frente apressadamente. Mantenha suas mãos em shashu em suas mangas, em vez de deixá-las caídas. Não vire a cabeça, mas apenas olhe para baixo adiante de você. Vá com cuidado e devagar sem fazer alvoroço. Quando você com atenção segue o grupo de acordo com este dharma, é o critério exato para entrar no Caminho.

O procedimento para hosan é o seguinte: O hosan ocorre depois do zazen do meio da tarde. Quando o grande grupo termina o almoço na sala dos monges, guarde o seu zafu, deixe a sala, e descanse no seu local de estudo no shuryô. Depois de um breve tempo, no meio da tarde (em termos mundanos, no fim da hora do carneiro [15hs]), retorne para a sala dos monges, retire seu zafu, e faça zazen. Daí até o almoço do dia seguinte, o zafu permanece de fora no seu lugar.

Antes do hosan, o monge chefe entra na sala dos monges. A rota do monge-chefe para entrar na sala é ir junto à passagem norte e entrar pelo lado sul da entrada da frente. Depois de bater três vezes o han em frente à sala do monge-chefe, o monge-chefe entra na sala e senta no seu lugar depois de oferecer incenso para Manjushri. Depois o doan anuncia aos monges nas várias salas que o monge-chefe está sentado na sala, ou então o doan pode informar aos monges batendo três vezes no han em frente ao shuryô. Ao ouvir o han, os monges entram na sala, vestem seus kesas e viram-se para sentar de frente uns aos outros. Neste momento, as pessoas que fazem zazen de frente para a parede vestem o kesa e viram-se de frente uns aos outros. Depois de reportar-se ao abade, o doan põe a placa de hosan [em frente à sala dos monges]. Depois disso, o doan levanta a cortina na frente da sala e entra, faz reverência para Manjushri, vai e fica de frente para o monge-chefe em gassho, e faz reverência. Depois, inclinando-se em shashu, o doan diz “osho hosan” em voz suave. [O abade dispensa os alunos da reunião.] O monge-chefe ouve silenciosamente em gassho. A seguir o doan retorna para a frente de Manjushri e, depois de apropriadamente fazer reverência, fica em pé em sashu e proclama em voz alta “hosan”. (Isso deve ser proclamado bem vagarosamente). Então o doan deixa a sala e bate o sino três vezes para hosan. (Isto é feito, em termos mundanos, cerca do meio da hora do galo [18hs].)

Quando os monges ouvem o sino fazem reverência, como durante as refeições, cumprimentando as pessoas próximas a elas [fazendo reverência para frente]. Se ainda estiver na sala, o abade levanta-se e faz reverência; então depois de fazer reverência em frente a Manjushri, o abade sai da sala. Os monges descem de seus lugares, fazem reverência em respeito a seus vizinhos, desenrolan seus colchonetes de dormir, e baixam as cortinas [em frente de seus armários].

Depois de retornar ao shuryô, os monges fazem reverência aos vizinhos e sentam-se frente uns aos outros em suas mesas. Podem tomar uma bebida quente se quiserem. As vezes são servidas bebidas quentes [de maneira formal] com o monge-chefe do shuryô sentado no seu lugar. O líder do shuryô oferece incenso antes de servir as bebidas com o grupo em gassho. O líder do shuryô pode oferecer incenso com o kesa sobre seu braço esquerdo ou depois de vestir o kesa, dependendo da instrução do abade ou do costume do templo em particular.

O procedimento para o líder do shuryô oferecer incenso é, primeiramente, ir e fazer reverência [no haishiki – almofada de fazer reverência] de frente para Avalokiteshvara. Então ele caminha para a frente do incensário e com sua mão direita oferece incenso; então vira para direita, em shashu, e retorna para a frente [do haishiki – almofada de reverência] e faz reverência. O líder do shuryô caminha em shashu para o alto [lado direito] do shuryô, a meio caminho entre o primeiro assento de ambas plataformas principais, e faz reverência [em direção ao lado direito do shuryô.] Então, depois de  virar-se à direita em shashu, ele passa em frente de Avalokiteshvara e caminha para baixo [lado esquerdo] do shuryô, a meio caminho entre o primeiro assento de ambas plataformas e faz reverência. Então, depois de novamente virar-se a direita em shashu, ele torna a ficar de  frente  a para Avalokiteshvara e fica em pé em shashu depois de fazer reverência. Depois disso, serve-se água quente ou chá.  Quando termina o chá, [o líder do shuryô] novamente oferece incenso e faz reverência, seguindo o mesmo procedimento anterior.

Escrito em Daibutsuji (Eiheiji)

– tradução Shinzen – fevereiro, 2009 a partir da tradução para o inglês de
Taigen Daniel Leighton & Shohaku Okumura,
publicada no livro “Dôgen’s Pure Standards for the Zen Community” (SUNY Press)
– revisão Monja Isshin – março, 2009

________________________________

[1] Koromo – roupa geralmente preta, com mangas compridas, usada pelos monges por cima do Kimono. (N.T.)
[2] Gaitan – uma área de sentar zazen que fica no lado de fora do Zendô. (N.T.)
[3] Kimono – roupa japonesa usada tradicionalmente por homens e mulheres, podendo ser bem colorida e de tecidos finíssimos. No caso dos monges, são de cores sóbrias, vestidos com “koromo” ou outra vestimenta por cima.
[4] Shukin – uma espécie de “corda” usada amarrada na cintura do Koromo. Pode ser usada para amarrar as mangas do kimono e/ou koromo na hora de lavar o rosto ou fazer trabalho.
[5] Futon – espécie de colchonete japonês que é esticado sobre o tatami na hora de dormir e, durante o dia, dobrado e guardado num armário.
[6] Tan – a área de um tatami onde o monge senta em zazen e, à noite, dorme.
[7] Ino – um dos chefes de departamento de um mosteiro zen. Recita as dedicatórias nas cerimônias, supervisiona o “samu” dos monges. O grupo de trabalho que lidera cuida da sala de zazen e da área externa do mosteiro como, por exemplo, os jardins.
[8] Doan – um membro do grupo de trabalho de Ino. Nas cerimônias ele toca os sinos.
[9] Shiryô, Fushiryô e Hishiryô – em inglês, Thinking, Not-thinking e Non-thinking. De tradução extremamente difícil e frequentemente traduzido como “além do pensar” ou “o inconcebível”. No entanto a tradução “além do pensar” pode ser erroneamente interpretada como significando “depois do pensar e não-pensar”. Mais correto seria algo como “a-pensar”. Trata-se do estado da mente pura, de plena atenção, presença aberta em contato direto com a experiência, “anterior” ao funcionamento da mente discriminativa ou “independente” desta. O mestre do Zen Coreano Seung Sahn o descreve como  o “ponto primário” (Primary Point).

Textos de Mestre Dogen (4)


Kangin
A Leitura dos Sutras
Dogen Zenji
Shôbôgenzô

Na prática e iluminação do despertar perfeito e supremo, usamos às vezes o ensinamento de um mestre, às vezes o ensinamento nos sutras. “Mestre” é o inteiro ser dos Budas e Patriarcas; “sutras” é o inteiro ser dos sutras. Logo, temos o ser de todos os sutras. “Ser” não tem identidade limitada – é visão ativa iluminada, e punhos vivos. Lembrar, ler, cantar, copiar, receber e possuir os sutras compõem o conjunto de prática e iluminação dos Budas e Patriarcas.

Mas é difícil encontrar os sutras budistas. No mundo inteiro raramente se ouve o nome dos sutras. Mesmo entre Budas, Patriarcas e seus descendentes é difícil ouvir só o nome. Se você não for Buda ou Patriarca não pode ver, ouvir, ler, cantar ou compreender os sutras.

Estudar aos poucos Budas e Patriarcas nos capacita a estudar os sutras. Então, as faculdades de ouvir, ver, gostar, cheirar e compreender a inteireza de corpo e mente realizam o ouvir, receber, possuir, explicar, e etc. dos sutras. Quem só procura fama ou expõe doutrinas de ímpios jamais pode praticar os sutras budistas. Transmitidos por árvores e pedras, tais sutras ficaram conhecidos dos campos de arroz aos povoados. Eles foram proclamados em toda parte, pelos reinos da terra e no universo inteiro.

Fazia muito tempo que o Grande Mestre Yakusan Kudo não dava um sermão do Darma. O secretário-geral do mosteiro pediu, “Todos os monges estão esperando para ouvir seus ensinamentos de compaixão”. Yakusan respondeu, “Bata o gongo e convoque a assembléia.” Isto feito, Yakusan entrou no Salão do Darma, sentou-se, ficou em silêncio por um bom momento, levantou-se e voltou aos seus aposentos. O secretário-geral veio atrás dele, dizendo, “Mas o senhor concordou em falar e está saindo sem dizer uma só palavra. Por que?” Yakusan disse, “Os sutras têm professores de sutras e as doutrinas do abidarma têm os estudiosos do abidarma. Por que ficar surpreso com a ação deste velho monge?”

Yakusan quis dizer que punhos têm mestres de punhos e visão iluminada tem mestres de visão iluminada. Porém, o secretário-geral devia ter dito, “Não fiquei surpreso com a sua ação. Aliás, que tipo de mestre é o senhor?”

Certa vez, Hotatsu, monge cuja ocupação principal era cantar continuamente o Sutra do Lotus, foi ver o Patriarca Daikan (Eno) do Monte Sokei em Choshu. O Patriarca recitou este verso:
“Se a mente está iludida, o Sutra do Lotus nos gira.
Se a mente está iluminada, giramos o Sutra do Lotus.
Por mais que cantemos, se não esclarecermos o ser
Palavras e letras vão obstruir a essência.
Pensamento sem pensar é verdadeiro.
Pensamento consciente é falso.
Abandone existência e não-existência
E vá sempre no carro-de-boi branco (Caminho de Buda).”

Assim, se a mente está iludida, o Sutra do Lotus nos gira; se a mente está iluminada, nós o giramos; e se transcendermos ilusão e iluminação, aí o Sutra do Lotus gira o Sutra do Lotus.

Ao ouvir este verso, Hotatsu ficou tão feliz que recitou seu próprio verso:
“Passei a vida cantando sutras
E agora um verso de Sokei me fez esquecê-los todos.
Sem esclarecer a emergência de Sakiamuni neste mundo
Não podemos ser liberados da transmigração.
Há ovelhas, cervos e carros-de-boi;
Começo, meio e fim estão cheios de coisas boas.
Quem sabe que dentro desta casa em chamas (o corpo)
Encontra-se o reino do Darma original?”

Então o Patriarca disse, “De agora em diante você é o monge que memorizou os sutras.”

Precisamos saber que há um monge desses no Caminho Budista. É isto que o antigo Buda Sokei mostrou diretamente. “Memorizar” não é consciência nem inconsciência, nem existência ou não-existência. Através de kalpas sem fim devemos continuar e memorizar os sutras dia e noite; de sutra a sutra, não há nada a não ser sutras.

Prajnatara, o vigésimo-sétimo Patriarca da Índia Oriental foi convidado pelo rei para uma refeição. O rei lhe perguntou, “Todo mundo está proclamando uma profusão de sutras, menos você. Por quê?” Prajnatara disse, “Perdoe minhas pobres palavras, mas eu diria assim: Quando eu expiro a minha respiração não é afetada nem por eventos nem por condições; quando eu inspiro eu não lido no mundo de formas condicionadas. Continuamente, eu proclamo o sutra da talidade; ele tem milhões e milhões de volumes, não apenas um ou dois.”

Prajnatara plantou as sementes (do Zen) na Índia Oriental. Ele foi o vigésimo-sétimo Patriarca descendente de Mahakasyapa. Ele transmitiu os pertences dos Budas – as cabeças, os olhos iluminados, os punhos, as narinas, os bastões, as tijelas, os mantos, os ossos, tutano, tudo deles. Ele é nosso Patriarca e nós somos seus descendentes. A essência da frase de Prajnatara é que não apenas sua respiração não é afetada por condições externas, tampouco as condições externas são afetadas. Condições externas como cabeça e olhos, corpo e mente não são afetadas por condições externas.

“Não afetadas” aqui significa “totalmente afetadas” (numa identidade de opostos). Embora respiração exalada seja condição externa, ela não é afetada por condições externas. Embora o significado de inalar e exalar, antes desconhecido, tenha assim permanecido por kalpas incontáveis, agora ele foi revelado pela primeira vez através das expressões “não lidar no mundo da forma” e “não afetado por condições externas.” Em condições externas temos a oportunidade de estudar “inalar”. Esta ocasião não existe no passado ou futuro mas no presente exterior.

O mundo da forma condicionada é o dos cinco skandas: forma, percepção, idealização, volição e consciência. Não lide nos cinco skandas. Você está num mundo onde os cinco skandas não aparecem. O principal aqui é que os sutras declamados não sejam apenas um ou dois mas milhões e milhões. “Milhões e milhões” é um número enorme mas também tem outro significado. Uma respiração na qual não tocamos o mundo de forma condicionada contém milhões de volumes. Contudo, isso não é nem uma grande quantidade de sabedoria nem um estado de liberdade. Isso transcende a posse ou não-posse de conhecimento e sabedoria. É simplesmente a prática e iluminação dos Budas e Patriarcas, na pele, carne, os ossos, tutano, olhos iluminados, punhos, cabeça, narinas, bastões e espanta-moscas deles.

Certa vez o Grande Mestre Shinsai recebeu o pedido de uma velha devota que tinha feito volumosa doação, para que lesse o Tripitaka inteiro. Joshu desceu do seu assento e caminhou em torno dele uma vez. Então, disse ao mensageiro da velha, “Acabei de ler o Tripitaka.” O mensageiro voltou e contou à mulher o que tinha acontecido. Ela disse, “Pedi a ele que lesse todo o Tripitaka. Por que ele leu só a metade?”

Agora podemos ver claramente que tanto o Tripitaka inteiro quanto a metade do Tripitaka são os três sutras (os três veículos) da velha. “Acabei de ler o Tripitaka” é a compreensão que Joshu tem dos sutras. Em geral, ler o Tripitaka é Joshu andar em torno do assento e o assento andar em torno de Joshu. Joshu anda em torno de Joshu; o assento anda em torno do assento. Ainda assim, a leitura do Tripitaka não é apenas andar em torno do assento, e nem o assento anda de roda.

Há outro caso parecido. Grande Mestre Jinsho, cujo nome no Darma era Hosshin, foi discípulo do Grande Mestre Daiê de Chokeiji. Certa vez uma velha discípula fez uma doação e pediu-lhe que lesse o Tripitaka completo. Daisai se levantou, caminhou em torno do assento e disse ao mensageiro da mulher, “Acabei de ler o Tripitaka.” O mensageiro voltou, contou o que tinha acontecido e a velha disse, “Pedi a ele que lesse todo o Tripitaka. Por que ele leu só a metade?”

Neste caso, não devemos estudar a caminhada de Daisai em torno do assento nem a do assento em torno de Daisai. Ele não estava tentando mostrar o punho perfeito (de Buda) e a visão iluminada. O círculo dele era o círculo do mundo do Darma. No entanto, a velha tinha capacidade de compreendê-lo ou não? “Ele leu só a metade” não basta, ainda que ela o tenha transmitido do seu mestre. Ela deveria ter dito, em vez disso, “Pedi a ele que lesse todo o Tripitaka. Por que ele desceu tão prontamente do assento?” Ainda que tivesse dito isto sem pensar, ela seria uma possuidora de visão iluminada.

Certa vez um ministro convidou o Patriarca Tozan para uma refeição. Feita a doação, o ministro pediu a Tozan que lesse o Tripitaka. Tozan desceu do assento e inclinou-se diante do ministro. O ministro devolveu o cumprimento. Aí, Tozan levou o ministro para dar uma volta em torno do assento. Tozan inclinou-se outra vez, esperou um momento, e perguntou, “Você compreende?” O ministro respondeu, “Não, não compreendo.” Tozan disse, “Eu lhe li o Tripitaka. Por que não compreende?”

O significado de “Eu lhe li o Tripitaka” deve ser claro. Não devemos aprender que andar em volta do assento é ler o Tripitaka, nem devemos aprender que ler o Tripitaka é igual a andar em torno do assento. Devemos ouvir atentamente as palavras do Patriarca.

Uma vez, quando meu finado mestre, um Buda antigo, vivia no Monte Tendo um peregrino da Coréia veio fazer uma oferenda e pedir a todos os monges que recitassem alguns sutras para ele. Meu mestre contou o caso acima sobre Tozan. Terminada a narrativa, meu mestre desenhou um círculo no ar com seu espanta-moscas, “Hoje eu li o Tripitaka para você”, disse, e jogando no chão o espanta-moscas saiu da sala.

Deveríamos examinar com cuidado as ações do meu finado mestre. Elas são incomparáveis. Quando leu o Tripitaka ele usou um olho brilhante ou só meio? Precisamos esclarecer a maneira pela qual Tozan e meu mestre usaram visão iluminada e língua de Buda.

O Patriarca Yakusan Kudo não costumava permitir leitura de sutra. Um dia, no entanto, um monge o encontrou diante de um livro aberto. O monge disse, “Mas, se o senhor não nos permite ler os sutras, por que está lendo sutras.” “Estava precisando de alguma coisa para descansar os olhos.” E o monge: “Quer dizer que eu posso usar a mesma desculpa?” O mestre respondeu, “Se você olhar para os sutras vai furar um buraco na capa de couro.”

O significado de “Estava precisando de alguma coisa para descansar os olhos” é que Yakusan tornou-se o próprio objeto. Isto significa abandonar visão iluminada, abandonar os sutras. O olho está obstruído e torna-se o olho obstruído. Há uma obstrução ativa atrás do olho; adicionamos mais uma pele à pele que cobre o olho. Com “obstrução” podemos iluminar o olho e vice-versa. Logo, se não for o sutra da visão iluminada não podemos obter o mérito inerente ao olho obstruído. “Furar um buraco na capa de couro” significa que a vaca inteira é couro. O couro, a carne, os ossos, o tutano, a cabeça, os chifres e as narinas formam suas funções vitais. Quando aprendemos sobre o mestre a vaca vira visão iluminada. É isto que significa repousar os olhos nalgum objeto. Aqui, visão iluminada transforma-se na vaca.

O Mestre Zen Yabu Dosen disse, “Venerar todos os incontáveis Budas nos dá imensa alegria. Mas isso vale mais do que ler os antigos ensinamentos? Os sutras são sinais pretos em papel branco. Abra os olhos e olhe para eles!”

Devemos saber que venerar os Budas antigos e ler os ensinamentos antigos tem a mesma virtude e felicidade. Não há felicidade e virtude além disso. “Ensinamentos antigos” significa sinais pretos em papel branco, mas quem conhece realmente os ensinamentos antigos? Precisamos estudar este princípio cuidadosamente.

Uma vez, um dos monges do Grande Mestre Kokaku do Monte Ungo estava lendo um sutra no seu quarto. O mestre chamou pela janela, “Que sutra você está lendo?” O monge respondeu, “O Sutra Vimalakirti-nirdesa.” O mestre disse, “Eu não perguntei sobre o sutra que você tem nas mãos. Que sutra você está lendo?” O monge foi repentinamente iluminado.

O “Que sutra você está lendo?” de Kokaku transcende tempo e é extremamente profundo; não pode ser posto em palavras. É como encontrar uma cobra venenosa na estrada; aí emerge a questão central do sutra. Sempre que encontrarmos um mestre seremos capazes de explicar o Sutra Vimalakirti sem erro.

De maneira geral, a leitura dos sutras deve basear-se no método usado por todos os Budas e Patriarcas. Eles usam sua visão iluminada. Naquele momento todos os Budas e Patriarcas se tornam Budas; eles eles proclamam o Darma e Buda. Se você não ler os sutras assim, você nunca verá a cabeça ou face dos Budas e Patriarcas.

Nas comunidades atuais dos Budas e Patriarcas há muitas ocasiões de leitura de sutras. Lêem-se sutras para o benefício de todos os seres quando um praticante leigo solicita, há recitações diárias regulares, recitações individuais de monges mais aplicados, etc. Há também um tipo de canto especial para o funeral de um monge.

Quando um praticante leigo vem ao templo e pede aos monges que cantem os sutras, o procedimento é o  seguinte: Depois do desjejum o monge chefe levanta uma placa em frente do mosteiro e do aposento dos monges anunciando a recitação. Um pano usado para prostrações é estendido diante da estátua de Manjusri. Na hora certa o gongo do mosteiro é batido, uma sequência ou três sequências, conforme a instrução do condutor da cerimônia. Quando soa o gongo, o condutor conduz todos os outros ao salão e eles sentam-se de frente. Todos devem estar usando o kesa. Em seguida entra o abade, faz uma reverência diante da estátua de Manjusri, e toma o seu lugar. Então, os ajudantes trazem os sutras, que devem ser preparados de antemão e organizados corretamente no seu invólucro.

Os sutras devem ser trazidos numa caixa especial ou numa bandeja. Todos os monges, segurando os sutras com reverência, começam a cantar. Então, o mestre-de-visitas conduz ao salão o praticante leigo, que deve trazer consigo um queimador de incenso colocado com antecedência pelo monge assistente à porta do templo. O sinal para entrar é dado pelo mestre-de-visitas. A entrada é feita pelo lado sul, o mestre-de-visitas à frente e o visitante atrás. Este oferece incenso à estátua de Manjusri e faz três prostrações enquanto segura o porta-incenso. Durante as prostrações do praticante leigo o mestre-de-visitas fica de pé no canto de cima do pano de prostração, virado para o sul com as mãos cruzadas sobre o peito. Quando termina suas prostrações o leigo vira-se para a direita e, de frente para a abade, faz uma saudação. O abade permanece sentado, pega o sutra e faz um gashô. Então o visitante dirige uma saudação para o lado norte. Em seguida, ele caminha em torno da sala, a partir do assento do abade. O mestre-de-visitas conduz o giro. Mais uma vez o praticante leigo, diante da imagem de Manjusri, ainda segurando o porta-incenso, faz uma saudação. Enquanto isso o mestre-de-visitas fica de pé na entrada, virado para o norte, com as mãos cruzadas no peito.

Depois de fazer a saudação a Manjusri o visitante segue o mestre-de-visitas para fora do mosteiro e caminha uma vez em torno dele. Ele entra novamente, faz três prostrações para Manjusri, dirige-se ao assento que lhe é indicado e acompanha a leitura dos sutras. Seu assento deve ser ou ao lado do pilar à esquerda de Manjusri, ou ao lado do pilar do lado sul de frente para o norte. Depois que o praticante leigo senta-se o mestre-de-visitas faz uma reverência e senta-se também. Algumas vezes um monge canta enquanto o visitante caminha em torno do mosteiro. Este monge deve sentar-se à esquerda ou à direita de Manjusri, conforme a circunstância. Apenas incenso da mais alta qualidade, como jinko ou senko, deve ser ofertado. O incenso deve ser preparado pelo leigo. Quando este caminha em torno do mosteiro todos os monges devem manter as mãos palma em palma, em gashô.

Em seguida, faz-se a oferenda. A quantidade ou tipo de doação depende do praticante. Às vezes oferecem-se leques, algodão, coisas assim. O praticante leigo pode fazer a oferenda ele mesmo, ou isso pode ser feito pelo secretário-geral ou um monge assistente. A oferenda deve ser colocada diante dos monges e não entregue a eles diretamente. Todos os monges devem fazer gashô quando a oferenda é feita. (Às vezes a doação é trazida antes da refeição da manhã. Neste caso bate-se na placa de avisos e o monge chefe entra com a doação. O mérito da oferenda do praticante leigo deve ser anotado por escrito e colocado na coluna à esquerda de Manjusri.)

Quando os sutras são cantados no mosteiro isso deve ser feito numa voz baixa, e não alta. Às vezes os sutras não são cantados em voz alta, são simplesmente abertos para que os monges olhem a escrita. Neste caso, geralmente usamos sutras como o Sutra do Diamante, vários capítulos do Sutra do Lotus, ou o Sutra da Luz Dourada (Suvarnaprabhasa-sutra, sânscrito), etc. Uma grande quantidade desses sutras deve ser mantida no mosteiro.

Cada monge dve ter sua própria cópia. Terminada a recitação os sutras devem ser postos numa caixa ou bandeja especial carregada por um ou dois monges. Neste momento, os monges devem fazer gashô e recitar as orações finais em voz baixa.

Se os sutras devem ser recitados fora do mosteiro o secretário-geral pode fazer o papel do praticante leigo, da maneira acima descrita, para lidar com o incenso, fazer as prostrações, caminhar e arranjar a doação. Ele deve segurar o porta-incenso da maneira indicada. Um monge também pode pedir que os sutras sejam lidos. Neste caso, ele age da mesma maneira que o praticante leigo.

No aniversário do imperador, os procedimentos para leitura dos sutras são os seguintes (a leitura deve começar um mês antes do aniversário): se o aniversário for, por exemplo, em quinze de janeiro, a leitura dos sutras deve começar em quinze de dezembro. Nesse dia não há sermão do Darma. Diante da imagem de Shakiamuni, no Salão de Buda, constroem-se duas plataformas de frente para o leste e correndo do norte para o sul. Entre as duas plataformas coloca-se uma prateleira para os sutras. Nela coloca-se um sutra, como o Sutra do Diamante, o Sutra Nino (Ninnô), o Sutra do Lotus, ou o Sutra da Rei Suprema da Luz Dourada (Suvarna Prabhavasottama-raja Sutra). Todos os dias alguma pequena especialidade deve ser servida a todos os monges: uma massa, uma sopa, ou um doce. O doce deve ser colocado em tijela com palitos, não com colher. Coma-o enquanto os sutras estão sendo cantados e não leve para nenhum outro lugar. A comida deve ser colocada ao lado dos sutras, sem necessidade de uma mesa especial. Terminada a degustaçao todos os monges devem ir ao lavatório e gargarejar. Em seguida, retornam aos seus assentos respectivos e começam a ler os sutras. Devem ler continuamente, da refeição da manhã ao meio-dia. Quando o tambor soar três vezes é o anúncio da refeição do meio-dia, que marca o fim da leitura de sutra naquele dia.

Desde o primeiro dia uma placa amarela anunciando a celebração do aniversário do imperador deve ser colocada a leste das calhas na frente do Salão de Buda ou na coluna leste dentro do Salão. O nome do abade deve estar escrito num pedacinho de papel vermelho ou branco junto com o ano, o mês e o dia da celebração. A leitura dos sutras deve continuar assim até o dia do aniversário do imperador. O abade então faz o sermão do Darma para marcar a celebração. Este é um costume antigo, que todos seguem.

Às vezes, algum monge especialmente aplicado deseja ler os sutras por iniciativa própria. Todo templo deve ter uma sala especial, onde os interessados na leitura de sutras devem ir. Para esse tipo de leitura, siga as regras anotadas no Shingi [Regras e procedimentos monásticos].

Certa vez, o Grande Mestre Yakusan Kudo perguntou ao noviço Ko, “O que é mais proveitoso, ler os sutras ou estudar com um mestre?” Ko disse, “Nem ler sutras nem estudar com um mestre tem qualquer valor.” Yakusan disse, “Você está bem afiado. Mas se nada disso tem valor, como a iluminação pode ser alcançada?” Ko disse, “Não quero dizer que ninguém pode alcançá-la, mas nem os sutras nem os ensinamentos de um mestre podem oferecer a essência.”

Alguns aceitam a essência dos ensinamentos dos Budas e Patriarcas, outros não. No entanto, ler os sutras e estudar sob a direção de um mestre nada mais é que as atividades diárias dos Budas e Patriarcas.

Dito aos monges em Koshohorinji, Uji, Yamashiro, em 15 de setembro de 1241. Transcrito em 8 de julho de 1245, por Ejo.

(Capítulo 30 do Shobogenzo, Olho e Tesouro da Verdadeira Lei, edição traduzida por Kosen Nishiyama, Tokyo, 1988)

– Tradução de José Fonseca
– Revisão de Monja Isshin

Refeição como Disciplina Espiritual (Lições do Tenzo Kyôkun) – 3


Refeição como Disciplina Espiritual
Lições do Tenzo Kyôkun – 3
por Tatsuzen Satô
Prof. da Faculdade Junior Ikuei, Japão

Texto introdutório: Repensando o Alimento
Parte 1: O Caminho do homem que cozinha
Parte 2: Os Efeitos espirituais do cozinhar

(3) Lavando o Arroz, Lavando o Coração.

Quando valorizamos o nosso trabalho, tudo fica simples e fácil. Se temos a atitude correta o trabalho é purificado. A manifestação da plenitude torna-se visível. Quando repetimos todos os dias o mesmo trabalho, começamos a trabalhar automaticamente, com o pensamento em outro lugar. Nada é simples. é preciso ter atenção no trabalho, porque ele é um reflexo de humanidade e consideração.

Vamos ver a situação de servir o chá. Como é explicado no “Nichijô Sahanji”, o ato de servir o chá está conectado à nossa vida diária. Embora existam vários tipos de chá, várias quantidades a serem servidas, diferentes horários, o sentimento de receber o chá é incalculável. É preciso se empenhar para realizar esta tarefa. Por outro lado, há situações em que este trabalho fica difícil. São necessárias várias tentativas e erros.

Isto é comum ao se lavar o arroz, embora este trabalho pareça simples. Medir a quantidade do arroz, colocar água, lavar os grãos parece fácil e monótono. Entretanto, se temos pressa, fica difícil lavar bem o arroz. Se não tomarmos cuidado, podemos deixar uma pequena sujeira passar ou o arroz pode acabar sendo jogado fora junto com a água. Depois de lavado, ajustamos o volume de água necessário para ele cozinhar. A quantidade de água influencia no gosto da comida. Devemos levar em conta a procedência dos ingredientes para poder fazer os ajustes. Se estes pontos forem esquecidos não será possível transmitir felicidade para a pessoa que recebe a comida.

Em outras palavras, o arroz possui vida. O mesmo valor tem os outros ingredientes, nada deve ser desperdiçado. Desta maneira o “tenzo” executa seu trabalho centralizado na pessoa que vai receber a comida. Não é porque o trabalho é simples que iremos trabalhar com negligência. Devemos ficar atentos não apenas com a sujeira, mas também com os grãos colados nela. Quando lavamos o arroz, devemos concentrar nosso coração-mente. Neste ponto, a unidade entre o trabalho e a pessoa se manifesta. Embora não exista a vontade de praticar, deve-se buscar este estado de unidade.

Se não existir esta relação entre a pessoa e o trabalho, quando jogarmos alguma coisa fora, ou quebrarmos algum objeto, não sentiremos nada. Mas se existir esta unidade, sentiremos dor se acontecer uma destas coisas. Chamamos de “etiqueta do arroz” o poder usar todo este potencial. Este tipo de coração é muito importante nesta época de abundância.

Lavar o arroz não é simplesmente lava-lo com água. A pessoa que lava deve checar o coração. O que faz deste trabalho uma prática budista é o esforço e a atitude empregados. Em todos os dias, nossa única preocupação, deveria ser guardar esta verdade dentro de nossos corações.

– adaptado de um artigo publicada na revista Caminho Zen, Vol. 10, No. 3 – 2005

Continuar lendo:
Refeição como Disciplina Espiritual (Lições do Tenzo Kyôkun)
Parte 4: Arranjo e Procedimento
Parte 5: Discriminação para a Comida
Parte 6: Respeitar a Comida

Refeição como Disciplina Espiritual (Lições do Tenzo Kyôkun) – 2


Refeição como Disciplina Espiritual
Lições do Tenzo Kyôkun – 2

por Tatsuzen Satô
Prof. da Faculdade Junior Ikuei, Japão
Texto introdutório: Repensando o Alimento
Parte 1: O Caminho do homem que cozinha

(2) Os Efeitos espirituais do cozinhar

Como a preparação das refeições é um trabalho diário, o “tenzo” – o monge responsável pela preparação das refeições – segue o mesmo ritmo, continuamente, durante o ano inteiro. Diariamente, depois do almoço, dirige-se ao diretor (tsûsu) ou ao diretor assistente (kansu) do Templo, para discutir os detalhes das refeições para o dia seguinte. Primeiro é preciso saber quais são os ingredientes disponíveis para serem usados nas próximas refeições. São tomados muitos cuidados para a preparação dos ingredientes, que devem ser limpos e guardados para evitar a sujeira e os insetos. A comida é tratada como o tesouro mais precioso. Muitas vezes, compras de emergência são inevitáveis, mas geralmente as compras são planejadas para formar o estoque necessário, evitando um excesso desnecessário e o apodrecimento de comida na geladeira.

Uma vez selecionados os ingredientes, o “tenzo” tem uma reunião com os seis administradores do Templo (roku chiji) para decidirem as refeições do dia seguinte. Isto é feito de uma maneira prática, levando em consideração a necessidade de aumentar a quantidade de comida, quando há trabalhos que consomem muita energia ou um treinamento religioso muito rigoroso. Uma vez decidido o menu, ele deve ser escrito em um mural chamado “gonjôhai”.

Quando é iniciada a preparação de uma refeição, todos os presentes na cozinha cooperam e a responsabilidade também é dividida entre todos. O trabalho é importante demais para permitir negligência entre os que participam. Mas o “tenzo” não deixa tudo nas mãos das outras pessoas, embora o trabalho de cada um seja muito importante. Os oceanos são formados por gotas de água, e as montanhas são o resultado de muitos acúmulos de poeira.

É preciso que vejamos o todo e os indivíduos como partes complementares. Frequentemente nos preocupamos com os preços do supermercado, mas deixamos as torneiras abertas, a televisão ligada sem ninguém olhando, e jogamos fora papel de embrulho, em bom estado.

Os cozinheiros devem evitar o desperdício. Devem checar, cuidadosamente, se não há sujeira no arroz, ou se ele não é jogado fora junto com a sujeira. Chega um momento em que o cozinheiro coloca todo o seu coração para preparar a mais deliciosa das refeições. Neste instante, ele, a pessoa que recebe a refeição e os ingredientes se tornam um. É neste instante que o ato de preparar a comida purifica o coração, Não existe mais espaço para coisas secundárias.

Cada grão de arroz possui a existência da vida, e por isso não pode ser desperdiçado.

Há muito tempo atrás este significado foi esquecido. Jogamos fora lápis, que embora curtos, ainda podem ser usados, ou rasgamos cadernos que ainda tem folhas em branco. Esta tendência humana atingiu proporções tão monstruosas que mesmo coisas mais caras são jogadas fora, como relógios, guarda-chuvas e roupas.

Podemos evitar tudo isso, não sendo tão obsecados pelo que consideramos as coisas importantes na vida, lembrando que as pequenas coisas como os grãos de arroz e as verduras tem a vida dentro delas.

– adaptado de um artigo publicada na revista Caminho Zen, Vol. 10, No. 1 – 2005

Continuar lendo:
Refeição como Disciplina Espiritual (Lições do Tenzo Kyôkun)
Parte 3: Lavando arroz, lavando o coração
Parte 4: Arranjo e Procedimento
Parte 5: Discriminação para a Comida
Parte 6: Respeitar a Comida



Refeição como Disciplina Espiritual (Lições do Tenzo Kyôkun) – 1


Refeição como Disciplina Espiritual
Lições do Tenzo Kyôkun – 1
por Tatsuzen Satô
Prof. da Faculdade Junior Ikuei, Japão
Texto introdutório: Repensando o Alimento

Dôgen Zenji, percebendo a íntima correlação existente entre as refeições e as atividades de Buda, escreveu dois livros importantes sobre o assunto. Um é o Tenzo Kyôkun (Instruções para o Chefe de Cozinha, ou, Instruções para o Cozinheiro Chefe), que estabelece as regras para o preparo das refeições, explica o seu significado, e qual a atitude correta em relação as regras. O outro livro é o Fushukuhanpô (Regras para a Alimentação), que explica as regras e a etiqueta que os monges em treinamento precisam observar na hora das refeições. O preparo das refeições é considerado uma parte vital do treinamento, e por isso o “tenzo”, ou chefe de cozinha, é um dos seis administradores (roku chiji) principais de um monastério.

(1) O Caminho do homem que cozinha

Antes de entrarmos nos detalhes do trabalho do “tenzo”, devemos pensar, novamente, porque é tão importante o trabalho do cozinheiro. Já se passaram dez anos, mas não esqueço um comercial de televisão, embora quase ninguém mais lembre dele. Neste comercial uma esposa tinha feito uma comida instantânea, e ao apresenta-la ao marido, diz : eu faço a comida” e ele responde “e eu como a comida”. No entanto, em menos de um mês, este comercial foi retirado das telas de televisão.

O motivo foi que o comercial tinha provocado críticas de discriminação sexual, por insinuar que o trabalho de cozinha é responsabilidade apenas da mulher.

Quanto eu lia a coluna do leitor, no jornal diário, observava que ninguém escrevia sobre a importância de cozinhar. Esta tem sido a atitude dos japoneses com relação as refeições.

Atualmente, é comum ver jovens casais fazendo compras juntos no supermercado. Se os dois seguem uma carreira profissional, fala-se que o homem também deve compartilhar a responsabilidade do serviço doméstico. Mas ainda se encara de maneira negativa um homem preparar a comida, ou ajudar na cozinha.

Como justificativa, citam a frase chinesa “o homem deve afastar-se da cozinha”. Mas esta frase não significa que um homem não deva trabalhar na cozinha. No Japão não se ensina a atitude correta para a preparação de uma refeição.

Dogen Zenji escreveu que o “tenzo”, sendo a pessoa encarregada das refeições desde os tempos antigos, tem sido um sacerdote que inspira as pessoas a buscarem o Caminho de Buda e da Iluminação.

As refeições se baseiam em três elementos – a pessoa que prepara a comida, a pessoa que a come e os ingredientes com que ela é feita. O ideal a ser cultivado é desenvolver um hábito alimentar baseado no relacionamento místico destes três elementos. Quem prepara a comida deve pensar na pessoa que receberá esta refeição, colocando este sentimento na comida.

Deve-se fazer um esforço para usar os animais e as plantas que servem de ingredientes, lembrando das vidas preciosas destes seres.

De acordo com a consciência de quem prepara ou come uma refeição, seu aspecto muda completamente. Mesmo usando os mesmos ingredientes, o resultado final pode ser bom ou mau. “Não há nenhum mérito em fazer um trabalho, se não se tiver fé no Caminho de Buda. “

O importante é sempre focar na sua mente e coração o objeto da sua ação. Embora a pessoa sem experiência tenha dificuldade em entender, quando se prepara a comida com o espírito – inconscientemente – a face reflete isto, está calma e numa atmosfera mística.

Fazer uma refeição é um trabalho árduo e profundo, que inicia com o preparo dos ingredientes e dos temperos.

Por isso no mundo do Zen, cozinhar e praticar são inseparáveis. Cozinhar já é um treinamento em si mesmo, cozinhar é uma manifestação da prática. Se o coração estiver presente e pensando nas outras pessoas, a compreensão de si mesmo será cultivada. Por isso cozinhar é um caminho para aperfeiçoar o caráter.

O mesmo se aplica a outras atividades, que vão desde o despertar pela manhã até a hora de dormir.
Isto guia os seis administradores do templo nos vários tipos de trabalho.

O Tenzo Kyôkun explica isto em todos os detalhes. Se não pudermos entender a essência deste livro, não seremos capazes de preparar uma refeição de modo adequado.

– adaptado de um artigo publicada na revista Caminho Zen, Vol. 10, No. 2 – 2005

Continuar lendo:
Refeição como Disciplina Espiritual (Lições do Tenzo Kyôkun)
Parte 2: Os Efeitos espirituais do cozinhar
Parte 3: Lavando arroz, lavando o coração
Parte 4: Arranjo e Procedimento
Parte 5: Discriminação para a Comida
Parte 6: Respeitar a Comida

Repensando o Alimento


Repensando o Alimento
por Tatsuzen Satô
Prof. da Faculdade Junior Ikuei, Japão

Para muitas pessoas o mundo é uma grande feira-livre onde todos os tipos de alimentos que se queira estão disponíveis. Mas isto não garante que possamos comer tudo que nos é oferecido lá. Em primeiro lugar, porque comendo em excesso, ou fazendo uma dieta que não seja balanceada, podemos provocar inúmeros tipos de doenças. Em segundo lugar, porque as pessoas que tem em abundância, esquecem a alegria da boa comida, e comem suas refeições sem gratidão. Para piorar ainda mais, desperdiçamos muita comida. Isto se deve a nossa atitude mental, em outras palavras, estamos prejudicando não apenas nosso corpo, mas também a nossa mente.

Estudos feitos na Medicina, nas Ciências e na Filosofia definem o significado da vida de formas diferentes. Porém não importa o que dizem, pois certamente nenhum indivíduo pode manter a vida por si próprio. Dentre as três necessidades básicas para a sobrevivência (a comida, as roupas e um abrigo para morar), a comida é a mais essencial de todas. Para isto precisamos sacrificar a vida de animais e de vegetais. Por isso, devemos ter o maior respeito pelo que comemos – este é um assunto muito sério.

Enquanto estudava na China, Dogen Zenji aprendeu que, por tradição, os chineses tratavam a comida com muita seriedade e a consideravam intimamente conectada com a Medicina.

O monge encarregado da nutrição ocupava um alto posto, e devotava um grande esforço para assegurar uma longa vida a todos, dando-lhes saude física e mental. Nos vários templos que visitou, Dogen Zenji sempre encontrou herdeiros desta tradição.

Quando voltou para o Japão, em 1237, Dogen Zenji, impressionado com a importância da comida, escreveu o Tenzo Kyôkun (“Regras para o Chefe de Cozinha”, também traduzido como “Instruções para o Cozinheiro Chefe”), e mais tarde, Fushukuhanpô (“Instruções sobre a Alimentação). Em ambas, ele trata as refeições como sendo muito importantes para a disciplina religiosa. Há 750 anos atrás, numa época em que as pessoas só estavam interessadas em comer o máximo possível, é incrível saber que ele encontrou um significado religioso na comida.

No Tenzo Kyôkun – “tenzo” é a designação dada ao monge responsável pela preparação da comida dos monges que estão em treinamento – o Mestre Dogen foca os cuidados e as atitudes apropriadas para trabalhar com ela. A importância deste livro, no entanto, ultrapassa os limites da cozinha de um Templo. Qualquer pessoa que o ler com cuidado, descobrira pontos aplicáveis a todas as situações do cotidiano. Ele também nos mostra os aspectos mais importantes em nossa maneira de viver, a natureza real da vida e as relações humanas.

Dôgen Zenji viu a preparação da comida como um dever importante na disciplina dos monges em treinamento, porque é na cozinha que nos deparamos com a essência da vida, sendo esta experiência rica em ensinamentos. Por isso ele só permitia que monges já com bastante treinamento religioso fossem servir como “tenzo”, e é por isso também que eles eram incluidos entre os chefes administradores do Templo.

Mas ele tinha outros motivos para salientar a importância da comida. Ter cursos acadêmicos é importante, mas nosso verdadeiro estilo de vida e de disciplina, depende mesmo é dos atos simples da vida diária, como cozinhar com sinceridade e total concentração.

O Tenzo Kyôkun começa corrigindo nossas errôneas concepções a respeito das refeições. De fato, repensar sua importância faz-nos valorizar os alimentos.

– adaptado de um artigo publicada na revista Caminho Zen, Vol. 10, No. 1 – 2005

Continuar lendo:
Refeição como Disciplina Espiritual (Lições do Tenzo Kyôkun)
Parte 1: O Caminho do homem que cozinha
Parte 2: Os Efeitos espirituais do cozinhar
Parte 3: Lavando arroz, lavando o coração
Parte 4: Arranjo e Procedimento
Parte 5: Discriminação para a Comida
Parte 6: Respeitar a Comida

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